Introducao a semanalise - Julia Kristeva.pdf

March 21, 2017 | Author: amareli222 | Category: N/A
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Julia Kristeva - semiotiké...

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INTRODUÇAO A .....

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PERSPECTIVA

Coleção Debates Dirigida por J. Guinsburg

Equipe de Realização - Tradução: Lucia Helena França Ferraz; Revisão: Samlra Martlia Dolinsky e Eloisa Graziela Franco de Oliveira; Produção: Ricardo W. Neves e Raquel Fernandes Abranches.

julia kristeva

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INTRODUÇAO A , SEMANALISE 1

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Título do original francês

I:11uetwnx1) Recherches pour une sémanalyse © Editions du Seuil, 1969

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Kristeva, Julia, 1941- . Introdução à semanálise / Julia Kristeva ; tradução Lúcia Helena França Ferraz. - 2. ed. São Paulo : Perspectiva, 2005. - (Debates ; -

84)

Título original: Recherches pour une sémanalyse. ISBN 85-273-0720-0 1. Semântica (Filosofia) 2. Semântica geral 3. Semiótica 4. Signos e símbolos I. Título. II. Série.

05-0698

CDD-121.68

Índices para catálogo sistemático: 1. Semiótica : Filosofia da linguagem 121.68

2' edição

Direitos reservados em língua portuguesa à EDITORA PERSPECTIVAS.A. Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401-000- São Paulo - SP - Brasil Telefax: (0--11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br 2005

SUMÁRIO l. O Texto e sua Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 2. A Semiótica, Ciência Crítica e/ou Crítica da Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 3. A Expansão da Semiótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 4. A Palavra, o Diálogo e o Romance . . . . . . . . . . . . . 65 5. Por uma Semiologia dos Paragramas . . . . . . . . . . . 97 6. A Produtividade Chamada Texto. . . . . . . . . . . . . . . 133 7. Poesia e Negatividade ...................... 175

l. O TEXTO E SUA CIÊNCIA Já bem tarde, somente agora, os homens começam a se dar conta do enorme erro que propagaram com sua crença na linguagem. NIETZSCHE,

Humano, humano demais

[... ] de diversos vocábulos refaz uma palavra total, nova, isolada da língua. MALLARMÉ,

Avant-Dire

Fazer da língua um trabalho - poiein -, laborar sobre a materialidade do que, para a sociedade, é um meio de contato e de compreensão, não é distanciar-se de saída da língua? O ato chamado literá1io, por não admitir a distância ideal em relação àquilo que significa, introduz o estranhamento radical relativamente ao que se julga ser a língua - um portador de sentido. Estranhamente próxima, intimamente estranha à matéria de nossos discursos e de nossos sonhos, a literatura nos parece hoje ser o ato mesmo que apreende como a língua funciona e indica o que ela amanhã tem o poder de transformar. 9

Sob o nome de magia, poesia e, enfim, literatura, essa prática sobre o significante encontra-se, ao longo de toda a História, envolvida por um halo misterioso que, seja valorizando-a, seja atribuindo-lhe um lugar ornamental, se não nulo, dá-lhe o duplo golpe da censura e da recuperação ideológica. Sagrado, belo irracional/ religião estética, psiquiatria - essas categorias e esses discursos pretendem, cada um por seu turno, ocupar-se desse "objeto específico", o qual não poderíamos denominar sem classificá-lo em uma das ideologias recuperadas e que constitui o centro de nosso interesse, operacionalmente designado como texto. Qual é o lugar desse objeto específico dentre a multiplicidade das práticas significantes? Quais são as leis de seu funcionamento? Qual é seu papel histórico e social? Tantas perguntas hoje colocada~: à ciência das significações, à SEMIÓTICA, perguntas que seduzem continuamente o pensamento e às quais um certo saber positivo acompanhado de um obscurantismo estetizante recusam conceder seu lugar. Entre a mistificação de um idealismo sublimado e sublimante e a recusa da atítude científica, a especificidade do trabalho com a língua persiste e mesmo há um século se acentua de modo a conq11istar mais e mais firmemente seu domínio próprio, sempre mais inacessível às tentativas de ensaísmo psicológico, sociológico e estético. A falta de um conjunto conceitual se faz sentir, o qual acederia à particularidade do texto, destacaria suas linhas de força e de mutação, seu devir histórico e seu impacto sobre o conjunto das práticas significantes. A. Trabalhar a língua implica, necessariamente, remontar ao próprio germe onde despontl:lm o sentido e seu sujeito. É o mesmo que dizer que o produtor da língua (Mallarmé) é obrigado a um nascimento permanente, ou melhor, que, às portas do nascimento, ele explora o que o precede. Sem ser uma criança de Heráclito que se diverte com seu jogo, ele é esse ancião que volta, antes de seu nascimento, para mostrar àqueles que falam que eles são falados. Mergulhado na língua, o texto é, por conseguinte, o que ela tem de mais estranho: aquilo que a questiona, aquilo que a transforma, aquilo que a descola de seu inconsciente e do automatismo de seu desenvol-

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vimento habitual. Assim, sem estar na origem da linguagem 1 e eliminando a própria questão de origem, o texto (poético, literário ou outro) escava na supeifície da palavra uma vertical, onde se buscam os modelos dessa significância que a linguagem representativa e comunicativa não recita, mesmo se os marca. Essa vertical, o texto a atinge à força de trabalhar o significante: aimsgem sonora que Saussure vê envolver o sentido, um significante que devemos pensar aqui também no sentido que lhe deu a análise lacaniana. Designaremos por significância esse trabalho de diferenciação, estratificação e confronto que se pratica na língua e que deposita sobre a linha do sujeito falante uma cadeia significante comunicativa e gramaticalmente estruturada. A semanálise, que estudará no texto a significância e seus tipos, terá, pois, de atravessar o significante com o sujeito e o signo, assim como a organização gramatical do discurso, para atingir essa zona onde se congregam os germes do que significará na presença da língua. B. Este trabalho justamente questiona as leis dos discursos estabelecidos e apresenta um terreno propício no qual novos discursos podem se fazer ouvir. Tocar nos tabus da língua, redist1ibuindo suas categorias gramaticais e remanejando suas leis semânticas é, pois, também tocar nos tabus sociais e históricos; mas essa regra contém ainda um imperativo: o sentido dito e comunicado do texto (do fenotexto estruturado) fala e representa essa ação revolucionária que a significância opera na medida em que encontra seu equivalente na cena da l. "A partir da teologia dos poetas, que foi a primeira metafísica, e apoiando-se na lógica poética daí decorrente, vamos no presente procurar as origens das línguas e das letras." (Giambattista Víco [1668-1774), La Science Nouvelle, Éd. Nagel, 1953, §428.) "Parece-nos, pois, evidente ter sido em virtude das leis necessárias da i1atureza humana que a linguagem poética tenha precedido à aparição da prosa ... " (Ibidem, § 460). Herder procurava no ato poético o modelo da aparição das primeiras palavras. Assim também Carlyle (Histoire lnachevée de la Littérature Allemande, Ed. Univ. of Kentucky Press, 1951, p. 3) sustenta que a esfera literária "encontra-se na nossa natureza mais íntima e envolve as bases primeiras, onde se originam o pensamento e a ação". Encontra-se uma idéia semelhante em N1etzsche, em sua tese da arte necromante: remontando ao passado, restitui ao homem sua infância.

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realidade social. Assim, por um duplo jogo, na matéria da língua e na história social, o texto se instala no real que o engendra: ele faz paiie do vasto processo do movimento material e histórico, se não se limita - enquanto significado - a seu autodescrever ou a se abismar numa fantasmática subjetivista. Em outros termos, não sendo o texto a linguagem comunicativa que a gramática codifica, não se contenta com representar - com significar o real. Pelo que significa, pelo efeito alterado presente naquilo que representa, participa da mobilidade, da transformação do real, que apreende no momento de seu não-fechamento. Dito de outro modo, sem remontar a simular - um real fixo, constrói o teatro móvel de seu movimento, para o qual contribuí e do qual é o atributo. Transformando a matéria da língua (sua organização lógica e gramatical), para aí transportando a relação das forças sociais da cena histórica (em seus significados regulados pela situação do sujeito do enunciado comunicado), o texto liga-se - lê-se duplamente em relação ao real: à língua (alterada e transformada) e à sociedade (com cuja transformação ele se harmoniza). Se ele desorganizar e transformar o sistema semiótico regulador da mudança socíal e, ao mesmo tempo, dispuser nas instâncias discursivas as instâncias ativas do processo social, o texto não logrará se construir como signo nem no primeiro, nem no segundo tempo de sua articulação, nem em seu conjunto. O texto não denomina nem determina um exterior: designa como um atributo (uma concordância) essa mobilidade heraclitiana que nenhuma teoria da linguagem-signo pôde admitir e que desafia os postulados platônicos da essência das coisas e de suaforma 2 , substituindo-os por uma outra linguagem, um outro conhecimento, cuja materialidade no 2. Sabemos que, se para Protágoras "a parte mais importante da educação consiste em ser um conhecedor de poesia" (338e), Platão não leva a sério a "sabedoria" poética (Crátilo 391-397) quando ele não condena sua influência transformadora e libertadora das multidões (Leis). É surpreendente que a teoria platônica das Formas, que se vê questionada pelo trabalho poético na língua (sua mobilidade, sua ausência de fixidez etc.), encontre além disso e ao mesmo tempo um adversário índomável na doutrina de Heráclito. E é de todo natural que, na sua batalha para impor suas teses da língua como instrumento de expressão com fim didáticos (378 a, b), da essência

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texto apenas agora começamos a perceber. O texto está, pois, duplamente orientado: para o sistema significante no qual se produz (a língua e a linguagem de uma época e de uma sociedade precisa) e para o processo social do qual participa enquanto discurso. Seus dois registros, de funcionamento autônomo, podem se separar em práticas menores, onde um remanejamento do sistema significante deixa intacta a representação ideológica que ele transp01ta, ou, inversamente, eles se reúnem nos textos marcando os blocos históricos. Tomando-se a significância uma infinidade diferenciada cuja combinatória ilimitada jamais encontra limites, a "literatura"/ o texto subtrai o sujeito de sua identificação com o discurso comunicado, e, pelo mesmo movimento, rompe com sua categoria de espelho que reflete as "estruturas" de um exterior. Engendrado por um exterior real e infinito em seu movimento material (e sem ser deste o efeito causal), e incorporando seu destinatário à combinatória de seus traços, o texto cria para si uma zona de multiplicidade de marcas e de intervalos cuja inscrição não-centrada põe em prática uma polivalência sem unidade possível. Esse estado - essa prática - da linguagem no texto afasta-o de toda dependência de uma exterioridade metafísica ainda que intencional e, pmtanto, de todo expressionismo e de toda finalidade; o que significa que o afasta também do evolucionismo e da subordinação instrumental a uma história sem língua\ sem com isso destacá-lo daquilo que é seu papel na cena histórica: marcar as transformações do real histórico e social, praticando-as na matéria da língua.

estável e definida das coisas cujos nomes são imagens enganadoras (349 b) - é necessário, pois. conhecer a essência das coisas sem passar pelos nomes:

eis o ponto de partida da metafísica pós-platônica até hoje - Platão, depois de haver desacreditado os poetas (o texto de Homero não lhe fornece provas para a estabilidade da essência), acaba por opor-se ao discípulo de Heráclito e ao princípio heraclitiano da mudança (Crátilo ). 3. A teoria clássica considerava a literatura e a arte em geral como uma imitação: "Imitar é natural nos homens e se manifesta desde sua infância [... ] e em segundo lugar todos os homens têm prazer com as imitações" (Aristóteles, Poética). A mimesis aristotélica, cuja sutileza está longe de ser revelada, foi compreendida ao longo da história da teoria literária como uma cópia, um reflexo, um decalque de um exterior autônomo, para dar

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Esse significante (que não é mais um desde que não depende mais de um sentido) textual é uma rede de diferença que marca e/ou reúne as mutações dos blocos históricos. Analisada do ponto de vista da cadeia comunicativa e expressiva do sujeito, a rede abandona: - um sagrado: quando o sujeito concebe um centro regente-intencional da rede; - uma magia: quando o sujeito se preserva da instância dominante do exterior, à qual a rede, por um gesto inverso, por destino, teria de dominar, mudar, orientar; - um efeito (literário, belo): quando o sujeito se identifica com seu outro - o destinatário - para lhe oferecer (para se oferecer) a rede sob uma forma fantasmática, ersatz do prazer. Desligar a rede desse tríplice nó - do um, do exterior e do outro, nós onde se entrnva o sujeito para aí se erigir - seria talvez abordá-la no que tem de especificamente próprio, a apoio às exigências de um realismo literário. Para a literatura concebida, pois, como uma arte, foi atribuído o domínio das percepções, oposto àquele dos conhecimentos. Essa distinção que encontramos em Platino (Ennéades, IV, 87: Dites de physeos tautes ouses, tes men noetes, tes de aiesthetes.! Também a natureza tem dois aspectos: um inteligível, o outro sensível) foi retomada por Baumgarten, que fundou com a palavra o discurso estético: "Os filósofos gregos e os padre·; da igreja sempre distinguiram cuidadosamente entre coisas percebidas (aistheta) e coisas conhecidas (noeta). É, de fato, evidente que não identificavam as cmsas inteligíveis às coisas sensíveis ao dignificar com esta palavra coisas tão distantes do sentido (das imagens, portanto). Conseqüentemente, as coisas intelectuais devem ser conhecidas por uma faculdade superior, como objetos da lógica; as coisas percebidas devem ser estudadas por uma faculdade inferior, como objetos da ciência das percepções ou estética (Al. G. Baumgarten, Réfiexions Sur la Poésie, Ed. Univ. of California Press, 1954, §116) E mais além: "a retórica geral pode ser definida como representações dos sentidos, a poérica geral como a ciência que trata geralmente d:1 apresentação perfeita das representações sensitivas" (ibidem, § 117). Se, para a estética idealista de Kant. o "estético" é um julgamento universal mas subjetivo, pois oposto ao co11ceitual, em Hegel a arte da palavra chamada "poesia" torna-se a expressão suprema da idéia em seu movimento de particularização: "ela (a poesia) abarca a totalidade do espírito humano, o que comporta sua particularização nas mais variadas direções" (Hegel, Esthétique, "La poésie , Ed. Aubíer, p. 37). Posta assim em paralelo com a filosofia especulativa, a poesia d~la se diferencia, ao mesmo tempo, em vüiude da relação que estabelece entre todo e parte. "Certamente,

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saber: a transformação a que submete suas categorias e a consao mesmo tempo, construção de seu domínio fora delas. truir-se no texto um campo conceitua! novo que nenhum discurso possa propor. C. Área específica da realidade social - da história -, o texto impede a identificação da linguagem como sistema de comunicação de sentido, com a história como um todo linear. Equivale dizer que ele impede a constituição de um continuum simbólico substitutivo da linearidade histórica, e que não pagará jamais - quaisquer que sejam as justificativas sociológicas e psicológicas que lhe possamos atribuir - sua dívida para com a razão gramatical e semântica da superfície lingüística de comunicação. Fazendo romper a superfície da língua, o texto é o objeto que permitirá quebrar a mecânica conceitua! que põe em foco uma linearidade histórica e ler uma história estratificada: de temporalidade co1iada, recursiva, dialética, suas obras devem possuir uma unidade concordante, e aquilo que anima o todo deve estar igualmente presente no particular, mas essa presença, em vez de ser marcada e acentuada pela m1e, deve permanecer um em-si interior, semelhante à alma que estú presente em todos os seus membros, sem dar-lhes a aparência de uma existência independente" (ibidem, p. 49). Assim, sendo uma expressão - urna exteriorirnção particularmente - da idéia, e porque participa da língua, a poesia é uma representação interiorizante que coloca a idéia o mais perto do sujeito: ''A força da criação poética consiste, pois, em a poesia modelar um conteúdo interiormente, sem recurso a figuras exteriores ou a sucessões de melodias: desse modo, ela transforma a objetividade exterior numa objetividade interior, que o espírito exte1ioriza pela representação, sob a própria forma na qual essa objetividade encontra-se e deve se encontrar no espírito" (ibidem, p. 74). Evocado para justificai· a subjetivização do movimento poético, o fato de a poesia seJ" verbal é rapidamente descm1ado: Hegel recusa pensar na mate1ialidade da língua: "Esse lado verbal da poesia poderia dar margem a considerações infinitas e infinitamente complicadas, das quais creio, contudo, dever abster-me, para ocupm--me de assuntos mais importm1tes que me esperam" (ibidem, p. 83). Essas reproduções de certos momentos ideológicos da concepção do texto - que cortam a página em dois e tendem a invadi-la - não estão destinadas unicamente a designar que aquilo que está escrito acima, tal qual um iceberg, vá ser lido sobre o fundo de uma tradição incômoda. Elas indicam, também, o pesado fundo idealista, de onde uma teoria do texto deve poder emergir: o do sujeito e da expressão, aquele fundo que se encontra por vezes retomado sem crítica, por discursos de pretensões materialistas que buscam na literatura uma expressão do sujeito coletivo da história.

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irredutível a um único sentido, mas feita de tipos de práticas significantes nas quais a série plural resta sem origem nem fim. Uma outra história se perfilará assim, que serve de base à história linear: a história recursivamente estratificada das significâncias, da qual a linguagem comunicativa e sua ideologia subjacente (sociológica, historicista ou subjetivista) representam apenas a faceta superficial. Tal papel, o texto o desempenha em toda sociedade atual: ele é-lhe solicitado inconscientemente, é-lhe interdito ou dificultado praticamente. D. Se o texto permite a transformação em volume da linha histórica, não deixa de manter relações precisas com os diversos tipos de práticas significantes na história corrente: no bloco social evolutivo. Em uma época pré-histórica / pré-científica, o trabalho com a língua se opunha à atividade mítica4 e, sem cair na psicose superada da magia5, porém tangenciando-a - podeliamos dizer, conhecendo-a -, ele se oferecia como o intervalo entre dois absolutos: o sentido sem língua acima do referente (se tal é a lei do mito) e o corpo da língua englobando o real 4. "Poderíamos definir o mito como esse modo de discurso em que o valor da fórmula traduttore, trarlitore tende praticamente a zero. Sob esse ponto de vista, o lugar do mito na escala dos modos de expressão lingüística é oposto ao da poesia, não importa o que tenhamos dito para aproximá-los. A poesia é uma fom1a de linguagem extremamente difícil de traduzir numa língua estrangeira, e toda tradução acarreta múltiplas deformações. Ao contrá1io, o valor do mito como mito persiste, apesar da pior tradução. Seja qual for nossa ignorância acerca da língua e da culturn do povo de onde o recolhemos, um mito é percebido como mito por todo leito« no mundo inteiro. A substância do mito não se encontra no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que aí é contada, O mito é linguagem; mas uma linguagem que trabalha num nível muito elevado, e onde o sentido chega a descolar-se do alicerce lingüístico sobre o qi.;al começou a correr" (Claude Lévi-Strauss, Anthropologie Structurale, Ed. Plon, 1958, p. 232). 5. Analisando a magia nas sociedades primitivas, Geza Roheim a identifica com o processo de sublimação e afirma: "a magia, em sua f01ma primeira e original, é o elemento fundamental do pensamento, a fase inicial de toda atividade [ ... ] A tendência orientada para o objeto (libido ou destrudo) é desviada e fixada sobre o Eu (narcisismo secundário) para constituir objetos intermediários (cultura), e desse modo dominar a realidade graças unicamente à nossa própria magia" (Magie et Schizophrénie, Ed. Anthropos, 1969, pp. 101-102; para esta tese de Roheim, cf. também The Origin and Function of Culture, New York, Nervous and Mental Desease Monographis, 1943).

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(se tal é a lei do rito mágico). Um intervalo colocado em posição de ornamento, isto é, esmagado, mas permitindo o funcionamento dos termos.do sistema. Intervalo que, com o curso dos anos, se distaneiará de sua proximidade com o rito para se aproximar do mito: aproximação exigida paradoxalmente por uma necessidade social de realismo, este entendido como abandono do corpo da língua. Na modernidade, oposto habitiialmente ao conhecimento científico formal 6 , o texto "estranho à língua" parece-nos, realmente, ser a operação mesma que introduz através da língua esse trabalho que pertence manifestadamente à ciência e que encobre a carga representativa e comunicativa da palavra, a saber: a pluralização dos sistemas abertos de notação não submetidos ao centro regulador de um sentido. Sem se opor ao ato científico (a batalha do conceito e da imagem não tem curso hoje), mas longe de se igualar a ele e sem pretender substituí-lo, o texto inscreve seu domínio fora da ciência e através da ideologia como uma verbalização (mise-en-langue) da notação científica. O texto transpõe para a linguagem, para 6. Como o nota Croce (la Poésie, PUF, 1951, p. 9), "foi em relação à poesia que foi abandonado, pela primeira vez, o conceito do 'conhecer receptivo' e postulado o do 'conhecer como fazer'". Pensada em relação à atividade científica, a literatura sucumbe a duas atitudes igualmente censurantes. Ela pode ser banida da ordem do conhecimento e proclamar-se ser da ordem da impressão, da excitação, da natureza (em virtude, por exemplo, de sua obediência ao princípio "da economia da energia mental do receptor", cf. Herbert Spencer, Philosophie of Style, An Essay, New York, 1880); da apreciação (o discurso poético, para Charles Morris, "significa através de signos, cujo modo é apreciativo, e sua finalidade principal é provocar a concordância do intérprete sobre que o que é significado deve ter um lugar preferencial em seu comportamento apreciativo", cf. Signs, Language and Behavior, New York, 1946}; da emoção oposta aos discursos referenciais (para Ogden and Richards, The Meaning of "Meaning", Londres, 1923, o discurso referencial opõe-se ao tipo emotivo de discurso). Segundo a velha fórmula Sorbonae nullum jus in Parnaso, toda abordagem científica é declarada inadequada e impotente face ao "discurso emocional". O cientificismo positivista comunga a mesma definição da arte, mesmo reconhecendo que a ciência pode e deve estudar seu domínio. "A arte é uma expressão emotiva [...] Os objetos estéticos servem de símbolos que exprimem os estados emocionais. O artista, como quem o olha ou o escuta, a obra de arte, introduzem significações emotivas (emotive meanings) no objeto físico, que consiste numa pintura exibida sobre uma talagarça, ou em

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a historia social, portanto, os remanejamentos históricos da significância evocando aqueles que encontramos marcados em seu domínio próprio pela descoberta científica. Essa transposição não poderia operar-se ou permaneceria caduca, fechada em seu alhures mental e subjetivista - se a formulação textual não se apoiasse na prática social e política - portanto, na ideologia da classe progressista da época. Assim, transpondo uma operação da insc1ição científica e falando uma atitude de classe, isto é, representando-a no significado daquilo que é entendido como um sentido (uma estmtura), a prática textual descentra o sujeito de um discurso (de um sentido, de urna estrutura) e constrói-se como a operação de sua pulverização numa infinidade diferenciada. Ao mesmo tempo, o texto evita censurar a exploração científica da infinidade significante, censura essa sustentada simultaneamente por uma atitude estética e por um realismo ingênuo. Assim sendo, vemos em nossos dias o texto tomar-se o teneno onde atua, enquanto prática e apresentação, o remanejamento epistemológico, social e político. O texto literário atualmente atravessa a face da ciência, da ideologia e da política como discurso e se oferece para confrontá-los, desdobrálos, refundi-los. Plural, plurilingüístico às vezes, e freqüentemente polifónico (pela multiplicidade de tipos de enunciados que aiiicula), ele presentifica o gráfico desse cristal, que é o

sons produzidos por instrumentos musicais. A expressão simbólica da significação emotiva é uma meta nat1ral, isto é, representa um valor que aspiramos desfrntar. A avaliação é uma característica geral das atividades orientadas do homem (human goal actfvities), e é oportuno estudar sua natureza lógica em sua generalidade, sem restringi-la à análise da arte" (H. Reichenbach, The Rise of Scientij!c Philisophies, Univ. of California Press, 1956, p. 313). Uma outra espécie de positivismo, que não est
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